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Globo Repórter
Data: 22 de abril de 2006
Pequenos hipertensos
Eles nem saíram da infância e já conhecem os riscos da vida adulta. E a
hipertensão na garotada começa pela boca. "Criança nessa idade só quer
comer hambúrguer, cachorro-quente, biscoito recheado, refrigerante", diz
Marta Lima Machado, mãe de Vinícius, 7 anos. Guloseimas que fizeram o
menino parar no cardiologista.
"Ele começou a ter pressão alta, dor nas pernas, muito cansaço. Não
agüentava jogar bola", conta Marta.
No hospital, em Bonsucesso, Rio de Janeiro, a cardiologista infantil
Marilacc Roiseman cuida de crianças hipertensas, um mal da vida moderna.
"As crianças brincavam mais na rua. Hoje as cidades estão mais
violentas, e, com isso, as famílias tendem a segurar as crianças em
casa. Elas ficam mais sedentárias, mais tempo na televisão, no
videogame, no computador", constata a médica.
A história se repete, só muda de endereço. No Hospital Regional, em
Campo Grande, Mato Grosso do Sul, 1,5 mil famílias já passaram pelo
Serviço de Tratamento de Obesidade e Hipertensão Infantil. E a doença do
coraçãozinho dos filhos, muitas vezes, é alimentada pela culpa nos
corações de pais ocupados demais.
A dona de casa Denise Vaz Pereira Rosa diz que, por ficar o dia todo
longe do filho, não tem coragem de negar um hambúrguer com maionese ou
uma coxinha com catchup ao menino. "É aquela coisa de passar a mão na
cabeça", reconhece.
A geração sem limites descontrolou a máquina que sustenta o corpo. Na
casa de Denise, nem ela nem o marido tem pressão alta. O alerta veio do
coração do filho, Jorginho. Aos 7 anos, ele tem hipertensão. E a doença
fez com que toda a família mudasse os hábitos alimentares.
Denise conta o que fazia parte da mesa: "Batata frita, feijão com um
porco inteiro dentro – orelha, pé, rabo –, peito de boi bem gordo assado
com bacon, calabresa, sal". Agora, saladinha e frango sem muito sal nem
gordura. O clima alegre ajudou o menino. E ele tem em casa um pai herói.
O resultado?
"Eu me sinto feliz. Com o corpo mais leve, me sinto melhor. Quando eu
crescer, quero ser forte e grande como meu pai", revela Jorginho. Jorge
pai emagreceu dez quilos. Jorge Filho já está cinco quilos mais magro e
cheio de energia. São voltas e mais voltas de bicicleta no quintal. O
corpo mais leve já pode se dependurar na árvore.
Agilidade que Vinícuis também recuperou depois de perder peso. Mas na
casa dele a mudança de hábitos não foi tão natural assim.
"Eu pensava que ela estava me maltratando, que não estava querendo me
dar comida", conta Vinícius.
"Mas eu sabia que aquilo estava fazendo bem para ele", diz a mãe do
menino.
E estava mesmo. Segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), 5%
das crianças e adolescentes no Brasil têm alguma alteração na pressão
arterial. São mais de 3 milhões de brasileirinhos com o coração doente.
No Hospital Regional em Campo Grande, mudar hábitos de vida até parece
brincadeira. E o tratamento da hipertensão infantil é feito em família.
Franklin, 14 anos, é filho de Ivete. Ele pesa 150 quilos. O coração do
adolescente já acendeu o sinal vermelho.
"Ele tem o colesterol extremamente elevado, em torno de 280. O normal
para sua idade seria 150. E os triglicérides, que estão em torno de 300,
deveriam estar, no máximo, em 150", conta o pediatra e nutrólogo Sandro
Trindade.
Na sala ao lado, Jorginho faz mais uma bateria de exames. Um alívio para
o cardiologista Waldir Salvi. Jorginho chegou ao hospital com o coração
dilatado por causa da obesidade, e a pressão estava lá em cima. "Quando
ele chegou aqui, a pressão estava em níveis de 12 por 8. Para uma
criança de 7 anos, já é considerada como hipertensão", avalia o
cardiologista.
De todas as crianças e adolescentes que começam a fazer o tratamento de
obesidade, pelo menos a metade chega ao hospital com pressão alta. Por
isso, além do acompanhamento médico, tem também professores de educação
física que fazem programas de exercício para cada família e cada
criança. Médicos e pacientes começam a se exercitar juntos.
Algumas voltas no pátio do hospital estimulam pais e filhos. E os
médicos não dão trégua nem quando as famílias voltam para casa. A
nutricionista vai direto para a cozinha ver se a família está mesmo
seguindo a dieta. "Minha geladeira virou praticamente uma piscina: só
tem água", brinca Ivete.
Décadas atrás, a pressão alta em crianças era provocada por outros
problemas de saúde, como disfunções renais. Era a chamada hipertensão
secundária. Hoje a pressão alta surge acompanhada da obesidade em
crianças aparentemente normais. Os problemas estão começando quarenta
anos antes.
"Se a criança que hoje tem entre 10 e 12 anos já está com hipertensão,
fatalmente, entre 20 e 30 anos vai ter problemas cardíacos e pode até
enfartar. Nós já temos visto no consultório pessoas com 27 anos
enfartadas", conta o cardiologista Waldir Salvi.
Em Campo Grande, a cruzada contra a hipertensão infantil chegou às
escolas. Os médicos pesam e medem a pressão dos alunos. Mas como
resistir às delícias nas cantinas? O jeito é tornar a merenda saborosa e
atraente.
Em Mato Grosso do Sul, 750 merendeiras das escolas estaduais foram
treinadas para cozinhar com menos gordura e sal e aprenderam receitas
mais saudáveis. "Estamos prevenindo e, ao mesmo tempo, tratando as
crianças que já têm esse tipo de problema de saúde", diz a nutricionista
Samanta Abrão.
Mas criança é difícil de agradar. Stefani Vilas Boas, 5 anos, diz que só
gosta de comer arroz e frango. Soja, nem pensar.
"Eu gosto muito de alface, mas não sou muito fã de soja", conta Flávio
Renato Nascimento, 12 anos.
Nas escolas do município de Campo Grande, as merendeiras inventam
receitas que combatem a hipertensão: polpa de peixe, tempero verde e
batata. Proteína texturizada de soja entra no cardápio duas vezes por
mês. A mistura é com a carne moída.
"Tem grande quantidade de vitaminas A e D, que ajudam na prevenção de
doenças cardiovasculares", explica a nutricionista Márcia Arakaki.
E a disputa é acirrada na hora de pegar o pratinho. Stefani e Flávio,
que não gostam de soja, se deliciam com a comida.
Mudar o comportamento e a alimentação e fazer mais exercícios é fazer o
caminho de volta: deixar as crianças ter uma infância como antigamente.
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